quinta-feira, 2 de abril de 2009

Faerie (parte 1 de 2)

Esse conto eu comecei a escrever faz muito tempo (pela metade do ano passado). Curiosamente, o que eu queria fazer não era um conto, era uma tradução. Nas minhas leituras pela internet me deparei uma música que gostei bastante (uma balada) que era bem curtinha, e fiquei com vontade de traduzí-la para o português. Só que eu acho traduzir esse tipo de coisa muito difícil, ainda mais sem contexto. Daí eu escrevi um conto, do qual essa balada faz parte, para contextualizar e facilitar o trabalho.
No fim das contas, tenho a parte em prosa já terminada, mas a tradução ainda está meio pendenga. Contudo, como achei que era hora de dar um jeito daquilo, resolvi postar aqui por dois motivos: 1) achei a prosa divertida, e já tinha vontade de mostrar pra alguém; 2) se eu não me forçar, não termino nunca de traduzir a balada.
Eis, então, o que se passa. Não se preocupem, esse conto é bem menor que o último (são só 2 partes).
Eis:

Faerie

Na corte do rei Oberon, muitas baladas são tocadas. E ele, um senhor justo e terrível, pune os trovadores que não o aprazem com a morte. Infelizmente, até hoje não houve canção que agradasse aos seus ouvidos, e ele requer menestréis semanalmente.
As mortes são fartas e previsíveis, e as paredes de seu palácio são decoradas com as cabeças dos músicos fracassados de seu reino.
Sua esposa, a senhora Titânia, é linda e cruel. Ela é a responsável pelas apresentações semanais. Sua parte favorita é a decapitação. Felizmente, seu senso estético lhe permite dispor as cabeças de forma limpa e agradável. Ela faz questão que apenas os jovens e belos sejam chamados para tocar para o seu senhor. E que, de preferência, não entendam muito de música.
Semana passada, ela descabeçou uma pobre ninfa, que não sabia cantar nem dançar, e que, para salvar a própria vida, tentou agradar lorde Oberon usando sua língua para outras coisas que não envolvessem música. Lady Titânia ficou tão enfurecida pela audácia da ninfa (e pelo fato de seu marido ter aprovado seus dotes), que ordenou que ela agradasse da mesma forma todos os servos do palácio e que, depois, ajudasse a esquentar a água do banho de seu soberano mergulhando sua língua nas brasas reais. Não satisfeita, a senhora de Faerie determinou que seus olhos fossem arrancados e usados como carvão antes de ordenar sua execução. Sua cabeça é a única que não foi posta na parede para ser usada como decoração. Ao invés disso, ela é guardada como exemplo àqueles que tiverem idéias similares.
Exatamente por isso, está faltando uma cabeça na parede, e a senhora Titânia exigiu que houvesse, essa semana excepcionalmente, a apresentação de dois menestréis. E enviou os seus arautos para que encontrassem trovadores de talento inversamente proporcional a sua beleza. E que fossem bonitos. Muito bonitos.
Então, seus hobgoblins saíram por toda Faerie em busca de alguém para convocar em nome do rei Oberon e sua corte. E passaram por elfos, trolls, pixies, dixies, selpies, kelpies, sprites, brownies, boggarts, kobolds, gnomos, ninfas, anões, e outros tantos habitantes do reino das fadas, mas nenhum deles fazia jus ao que a rainha queria. Ou não eram belos o bastante, ou tocavam bem demais.
E quase ao fim da semana (que, para sua sorte, tem dez dias em Faerie), viram vagando pelos Ermos dois jovens humanos, um menino e uma menina, que buscavam frutas encantadas para levar para casa.
Poucas maçãs são tão vermelhas, morangos são tão doces, e pêssegos são tão suculentos quanto aqueles permeados pela influência mágica da corte de Oberon e Titânia. Mais do que elas, apenas as frutas criadas no coração de Faerie, no jardim real, servidas pessoalmente aos lordes do reino. Muitas são as histórias de mortais que adentraram os domínios ancestrais das fadas buscando o sabor sobrenatural de suas amoras. Poucas são as que narram do seu retorno.
Impressionados com a beleza daqueles dois jovens – que eram os primeiros humanos em séculos a colocar os pés naquela terra –, os servos de Titânia trataram logo de elaborar um plano para levá-los a sua rainha sem despertar suspeitas entre os homens. Procuraram rapidamente duas árvores de Ipê e serraram seus troncos. Então, começou o seu ritual.
Juntos, os hobgoblins glamourizaram os troncos serrados, vendo-os crescer lentamente. Primeiro, nasceram as pernas: formaram-se os joelhos, cresceram os pés e os dedos, um a um. Depois, brotaram os braços: ombros, cotovelos, mãos e dedos. A cabeça foi a última, e quando estava completamente formada, abriram-se os olhos. Ao seu redor, os hobgoblins apontavam os jovens que os Ipês deveriam substituir.
Os dois troncos, então, com suas mãos, agarraram o próprio corpo e abriram-no como a uma casca. Tal qual borboletas que abandonam o casulo, saíram as crianças de dentro dos troncos: seus cachos dourados, pele branca e sensível, os seios ainda pequenos e a genitália loura. Estavam prontos para assumir o seu papel, e os hobgoblins providenciaram os últimos arranjos. Glamourizaram algumas frutas e jogaram-nas para os jovens que, ingenuamente, comeram-nas. O encantamento conjurado atiçou-lhes o sono, e caíram desacordados, derrubando sua cesta de frutas. E, finalmente, para os Ipês, agora transformados, eles conjuraram roupas como as dos dois humanos, para que tomassem seu lugar na Terra sem levantar suspeitas.
Os Ipês pegaram a cesta do chão para levá-la consigo enquanto os hobgoblins enfeitiçavam as duas crianças para que não pudessem mais retornar ao seu lar. Faeria seria sua nova casa, mas não por muito tempo. Teriam a duração exata de uma balada.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Agradecimentos, naturalmente

Como eu havia dito antes, planejava fazer um post com agradecimentos. Aí pode vir a pergunta: agradecimentos pelo que, exatamente.
A resposta é algo que eu considero bastante simples. Talvez simples demais para os leitores, mas bastante significativo para mim.
Vejam bem, eu só criei o blog pensando em escrever minhas coisas, postar aqui, e ver comentários. Até para poder melhorar. Mas o que aconteceu é que o blog, ao menos para mim, hoje é muito mais do que isso. Conheci algumas pessoas muito interessantes pela internet, donos de outros domínios, que também têm muito conteúdo (e bom). Pessoas que me deram apoio, gente que me xingou, que comentou uma vez depois nunca mais, etc. Mas a verdade é que esse projeto do blog, cujo ápice recente foi o Mito da Criação, não estaria aqui hoje sem essas pessoas e seus comentários. Até porque, esse é um lugar que me estimula a escrever continuamente. No último post, creio que isso ficou bastante explícito.
Bom, quanto a essas pessoas, ei-las:

Adri. Não são necessárias mais palavras. Só o nome dela já é o bastante!
Brincadeiras à parte, grande amiga que conheci meio que por acaso na facul e com quem mantive uma amizade bem divertida pelo msn, q depois foi levada para a vida real. Imaginem, estudávamos juntos, mas foi o msn que nos uniu. Obrigado por tudo ;)

Hermes. Um dois primeiros que veio aqui e que "falou mal" de um dos meus contos. E como não sou um desses escritores cuzões que acham que todo mundo tem que falar bem, li o que ele escreveu e tenho de dizer que concordei. E ainda fui pro blog dele para ver como era. Muito obrigado pela honestidade.

Gerusa. Eis aqui uma poeta. Sempre que leio os escritos dela, vejo o quanto falta melhorar para ser bom mesmo. Serve de inspiração e estímulo para que eu continue a escrever. Nao bastasse isso, ainda me mandou o livro dela, Versilêncios, recém lacçado. Gente, não sou de poesias, mas esse aí vale a pena. Leiam!

Marina. Do blog, Do fundo do Mar, que veio aqui e foi a primeira blogueira de qualidade que conheci (depois da Adri, claro). Leio tudo o que ela escreve, mas nem sempre comento. Às vezes não tenho nada de construtivo, mas sempre me divirto. Vale a pena!

Siane. Last but not least, minha namorada. Que foi quem meio que me forçou a criar este blog (apesar da minha má vontade inicial) e me fez correr atrás de muita coisa (na minha vida pessoal mesmo). Te devo muito, minha linda ;) E ela tem blog, também.

Esses são os mais importantes, certamente, que vêm acompanhando com alguma frequência, e sempre que podem, deixam comments.

Agora, um agradecimento a você, seu aleatório, que vem aqui, lê, dá o sei pitaco, e some! E às vezes volta! Aí volta a sumir! Obrigado por sua participação e por aumentar a contagem de visitas do blog.
Pode parecer gozação, mas é verdade. Todos são bem-vindos, e quanto mais, melhor!

Só não coloco os links porque estou com preguiça agora. Vocês sobrevivem, tenho certeza

Um abraço, e até o próximo projeto semana que vem!

segunda-feira, 23 de março de 2009

Voltei (mais ou menos) ou Mais um blablablá sobre tradução

Olá a todos os piolhos, carrapatos e traças que frequentamo meu blog. Olá a todos os seres unicelulares que passam pelo meu computador, perfurando a rede interna com sua presença despercebida e, bem, única... Mas, principalmente, olá a todos os que leem o conteúdo que este autor aqui tanto se esforça em criar e escrever.
Como eu havia dito na última parte, tinha que tirar um descanço: as aulas estavam começando, estava meio sem ideias, trabalhos estavam ficando fixos, etc. Bom, tudo isso continua, mas agora eu consegui me organizar. Mais ou menos. O motivo principal que me traz de volta, contudo, não tem nada a ver com o que foi dito. Não.
O que me traz aqui novamente é o que eu percebi recentemente. Como eu disse vez e outra por aqui, eu sou um tradutor. Atualmente, apenas de trabalhos manuscritos, mas o objetivo é fazer um "upgrade" para a interpretação. Além de publicar, é claro. Mas o trabalho que mais me consome tempo agora é o da tradução de um romance. É um livro infantil, nos moldes de um Harry Potter/Coração de Tinta. Acho que isso resume bem a questão. Tenho traduzido bastante, feito mudanças, escolhas, reescrito, tudo isso inerente ao ato tradutório. Eu poderia encher uma página com teorias de tradução que aprendi na Faculdade, mas não creio ser necessário. Qualquer questão pontual que haja, posso me debruçar sobre ela mais detalhadamente em outro momento. O que me refiro agora é muito mais simples, mais primitivo que qualquer uma dessas teorias. Concerne, isso sim, ao ato da escrita.
Vejam bem, tenho diversos colegas na Letras (é o meu curso de graduação) que pregam que, quando lemos uma tradução, não lemos o escritor, e sim o tradutor. É a visão dele da história, da linguagem, são as escolhas que ele faz que vão parar na versão traduzida. Eu sou um pouco mais brando. Pessoalmente, eu vejo a tradução como um trabalho de co-autoria do tradutor. Ele se envolve com a trama, com os personagens, com a linguagem, com o tecido da obra (se é que tal expressão pode ser empregada). E a conhece tão intimamente que tem, sim, parcela de responsabilidade por seu conteúdo.
Contudo, traduzindo, vê-se que, por mais co-autor que eu seja, aquilo não é meu. Estou gostando de "auxiliar" a autora e transformar sua história e tudo o que lhe compete em algo genuinamente brasileiro, fruto da cor local, e não num turista genérico cheio de sotaque.
Contudo, repito, esse trabalho não é meu. Ao menos, não só meu. E eu notei como sentia falta de produzir algo que viesse de mim, que eu olhasse e dissesse: meu filho.
Os mais atentos verão imediatamente a semelhança do autor com Jonathan. Os menos atentos viram agora :p
E os que não leram devem ter ficado curiosos :P
Vejam bem, a minha ideia era fazer um agradecimento, e ao invés disso, vim "extravasar". Talvez esteja na hora de ligar para o meu psiquiatra. Ou talvez esteja na hora, isso sim, de escrever.
Estou preparando um conto em duas partes (sujeito a mudanças, vcs sabem) a ser "publicado", a partir de semana que vem. Me aguardarem.
Quanto aos agradecimentos, prometo que estarão no ar até, no máximo, sexta.
Aos que leram até o fim, um bônus.

Coisas de Criança

O garoto costumava ficar trancado no quarto por horas conversando com sua sombra. Ele parou no dia em que ela respondeu.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Aviso aos navegantes (Mito da criação, final)

Enfim, chegamos ao derradeiro capítulo. Eu havia prometido essa parte para ontem, mais tardar hoje, e como sempre, tardei. Nada que seja surpresa, hehehe.
Bom, para esclarecer, essa parte ficou bem maior que as outras, escrevi ela na terça de madrugada (lembro de olhar para o relógio e ver que eram 3h30 e que eu ainda não tinha terminado), até pq tinha outros trabalhos que me ocupavam.
Com essa última parte, creio que encerro um ciclo no blog; acho que o site entrará em recesso talvez por umas duas semanas (ou mais), enquanto eu traduzo mais coisas (peguei um romance para fazer a tradução. Vamos ver como esse fica...), e preparo o próximo projeto. Já tenho uma boa ideia do que temos pela frente, então espero que possam me perdoar por deixar o site largado tanto tempo às traças. Contudo, creio que terei mais tempo para ler o blog dos outros e fazer comentários construtivos (coisa que, desde que me juntei à rede, tenho tentado fazer. Infelizmente, mts projetos acabam me cansando e fica difícil ler com a atenção desejada). Serei mais atencioso.
Bem, não vou me alongar mt, até pq o conto está grande.
Vejo vcs em breve, no site de vcs. hehehe
Um abraço a todos!

Mito da criação... 7 (final)

Durante os meses que se seguiram, Christian e Célia foram se conhecendo de tal forma e tão intimamente, que seu relacionamento evoluiu a uma paixão e, portanto, ganhou um entorno romântico, sujeito a uma série de convenções de gênero – mas nem por isso menos verdadeiro. Quantas vezes Christian não teve de atravessar oceanos, montanhas e céus, todos feitos com papel da mais alta qualidade, munido que estava apenas de sua bravura e da cumplicidade de seu autor? Sempre em busca de sua amada, que havia se perdido, ou sido sequestrada; ou então à procura de um antídoto ou item que pudesse salvá-la. Eis a tarefa de um herói romântico, é claro.
Contudo, naqueles momentos de solidão em que se encontrava longe dela, é que se lhe revelava a raiva que Célia tão habilmente controlava, pulsando agora forte em seu peito, abastecendo seu corpo de uma energia nova e potente. Por motivos nobres, belos e puros, páginas e páginas eram escritas narrando as incríveis jornadas de Christian, todas descrevendo atos de crueldade e devassidão como ele jamais fora capaz. Não antes de Adahn.
Espectador da barbárie, foi com essa lição que Jonathan compreendeu a importância do vilão. No fundo, é ele quem define o herói e, por conseguinte, a história. Heróis, ele percebeu, são uma força reativa, presos que estão a seus arqui-inimigos; um herói será tão forte e importante quanto for seu vilão, contanto que esteja à altura. E nisso, Jonathan temia por seu personagem.
Um tanto preocupado, o autor observou – e narrou, ao melhor de suas habilidades – seu protagonista subir num barco e zarpar numa empreitada incerta rumo ao coração do mundo, uma vez mais em busca de sua amada.

Eram duas da manhã quando o celular de Jonathan tocou, despertando-o de seu transe. Ultimamente, ele já não sabia definir o que era mais comum em sua vida: perder-se em sua criação, ou ser arrancado dela.
Com voz fatigada, ele atendeu ao telefone e escutou, um tanto incrédulo, que Julia estava no hospital e que havia entrado em trabalho de parto. Jonathan levantou-se rapidamente da cadeira, derrubando seu material de forma desordenada. Às pressas, abaixou-se, recolheu tudo, pôs no lugar e saiu.
Menos de um minuto depois, retornou para pegar um casaco e um guarda-chuva. Deu uma última olhada no apartamento, apagou as luzes e fechou a porta, sentindo um silêncio pesado cair a suas costas, tal qual um lençol que cobre, gentil e suave, móveis antigos, protegendo-os do pó.
À rua, voltava seu olhar de um lado a outro à procura de um táxi que pudesse transportá-lo. Cada segundo à espera parecia uma ampulheta que virava e revirava – suas areias escorrendo num ritmo calmo e previsível, ignorantes do tempo ao seu redor.
A água que caía sobre ele e a cidade era a mesma que lavava o convés da embarcação de Christian e seus comandados. Fortes temporais bufavam contra eles, jogando-os para longe, impedindo-os de cumprir sua missão. Mas Christian não se deixaria abater. Seu objetivo estava próximo; a misteriosa ilha de Arcádia podia ser vista ao longe, cercada por um exército de furacões implacáveis.
O mastro retorcia-se como um velho deixado ao relento, cobrindo-se do frio e da dor com sua pele frágil, sua pele flácida. Exposto aos elementos, o barco mais parecia um brinquedo de papel, cruelmente esmagado quando sua utilidade chega ao fim.
Então, Christian, num ímpeto de fúria e ousadia, esquecendo-se de sua própria segurança – e ignorando a de seus companheiros – jogou a embarcação contra um dos muitos tornados, esperando – loucamente – que seu navio fosse tão forte quanto sua determinação, e atravessasse o paredão de ares incólume.
Apenas quando tudo ao seu redor se desfez como areia lançada ao vento é que ele se apercebeu de seu erro.

Enfim, Jonathan conseguiu um táxi. Entrou rapidamente e, meio atrapalhado, meio esbaforido, disse para onde desejava ser levado. E qual não foi sua irritação ao ter que repetir diversas vezes o nome do hospital até que o motorista entendesse? Depois de mais um (longuíssimo) minuto, ele conseguiu fazer-se compreender, ao que o carro acelerou bruscamente e arrancou em disparada até seu destino.
Durante o trajeto, Jonathan olhava pelo vidro as poucas luzes que restavam acesas em alguns apartamentos, questionando o que aquelas pessoas fariam acordadas àquela hora. Quais seriam suas histórias? Então, sua atenção ficou presa em outra fonte de luz. A noite era iluminada por uma lua cheia, resplandecente como ela só. Nem as nuvens que transitavam eram capazes de ofuscar seu brilho.
As gotas que caíam na janela e no para-brisa movimentavam-se conforme o ritmo do carro e sopro suave do vento, que respirava como um recém-nascido sobre a cidade adormecida. Um ronco jovial parecia acompanhar o táxi em cada curva, cada reta de seu trajeto.
Quando chegaram ao hospital, Jonathan pagou o homem e saiu – meio aos tropeços – atirando-se para fora em busca de Julia. Não tão diferente assim de Christian, que, ao despertar, encontrou-se, para sua própria surpresa, na praia de Arcádia. Ao seu redor, o barco jazia em forma de escombros, mas ele parecia ser o único que havia conseguido atravessar.
Sozinho, respirando o ar sagrado, tragando o cheiro de sangue, o cavaleiro levantou-se e partiu em busca de sua amada. Por quanto tempo procuraria? Horas? Dias? Semanas? Meses? Não morreria ele de fome ou sede? Não seria capaz de enlouquecer e perder-se no labirinto da própria mente?
Não.
Depois de muito vagar, Christian deparou-se com seu temível adversário, Adahn. Que prendia Célia em seu poder.

Jonathan pegou o elevador e subiu até o andar indicado pela recepcionista. Lá, iniciou uma pequena peregrinação por corredores e curvas e portas e becos e salas. Sem muita ideia de onde estava (ou aonde precisava ir), foi se metendo a conversar com médicos e enfermeiros até que lhe mostraram o local em que o parto estava sendo feito. Entrou na sala, devidamente trajado com avental, máscara, toca e pantufas e, olhando Julia bem nos olhos, agarrou sua mão.
Não eram necessárias palavras, gestos, juras, nada. A presença dele ali já era o bastante para apaziguar-lhe o espírito e dar-lhe forças em sua luta. Aí, sem mais o que fazer, ela sorriu.

Christian e Adahn batalhavam com força, velocidade e técnica; além do ódio controlado que sentiam um pelo outro. Uma sensação de repulsa e atração que fazia com que se cruzassem e se enfrentassem, encontrando pretextos como amor ou ambição ou vingança para tal. Nada mais era que a atração devidamente planejada por um criador maior, que em seu poder, elegeu-os como adversários, até o fim de suas histórias.
A poucos metros do combate, Célia observava horrorizada enquanto seu amado se digladiava numa batalha que seria incapaz de vencer.
Adahn era mais forte, mais rápido, mais técnico. Até mais ódio ele parecia ter. Em movimentos precisos, ia, de pouco em pouco, desgastando seu adversário, preparando terreno para o golpe derradeiro.
O herói, enfim, sobrepujado. A espada de Adahn descia como uma avalanche, alimentada por anos de neve e rocha, provocada por uma voz desavisada que passava minúsculo diante de tamanho poder. Christian, sentindo seu fim próximo, fechou seus olhos, preparando-se para sua última dor, e lançou-se num ataque suicida contra seu rival.
Contudo, ao contrário do que esperava, não sentiu a dor lancinante e o suave embalo da morte tomando-o nos braços. Sentiu, isso sim, sua espada varar seu adversário, atravessando-o como um paredão, vencendo a batalha.
Mas, como sempre, existe um preço.
Célia havia se lançado à frente do golpe de Adahn, aparando-o com seu próprio corpo, dando uma chance a Christian de sobreviver. E vencer.
Adahn estava agora caído ao chão, agonizando sua última agonia, sentindo o sangue escorrer-lhe pelas veias e além. Sua pulsação diminuía gradativamente em soluços e goles de um líquido viscoso e opaco que lhe transbordava pelo corpo.
Christian segurava Célia em seus braços exaustos e abraçou-a, sentindo o calor dela enquanto ainda restava algum. Antes de partir, contudo, ela encontrou forças para olhar Christian nos olhos e dizer: “Viva. Viva pela vida que não poderei ter. Viva pela vida que você não teve. Viva por todos que morreram para que você pudesse estar aqui. Faça o que fizer, meu amor, viva!”
Sentido-a partir, deixando-o sozinho uma vez mais, ele olhou para o corpo frio em seus braços e, então voltando seu olhar aos céus, obedeceu.
Ao fim de quatro horas, Christian nasceu.
Era um bebê lindo.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Mito da criação (parte 6)

Bom, sei que eu havia prometido essa parte para segunda-feira, mas deu aquela preguiça... Mas não foi só isso, claro. Essa parte já estava pronta na terça-feira. Só que, por algum motivo, a internet aqui de casa resolveu que não ia funcionar, então não tive como fazer updates. Pra falar bem a verdade, a internet do meu pc ainda não está funcionando, mas família é pra essas coisas, né? hehehe
Bom, sei que todo mundo já deve estar um tanto cansado com a história (já tem gente pedindo o final), e sinto muito desapontá-los, mas ele ainda não está pronto. Mas nada que não se resolva fácil, fácil.
Essa é a panúltima parte, e pretendo encerrar tudo na semana que vem, numa parte maior que as outras (afinal de contas, o fim tem de ser algo especial, memorável!).
Perdão pelos atrasos, mas acho que continuarão ocorrendo. hehehe
Pra semana que vem, planejo encerrar na quarta ou, mais tardar, quinta. Juro que disso não passa!
Sem mais delongas:

Mito da criação... 6

Jonathan tomou seu banho frio, como sempre, para espantar o cansaço que teimava em assombrar seu rosto, seus olhos, sua boca, sua expressão, seus gestos. Nesta manhã, contudo, vinha outro evento povoar seus pensamentos. Ele, Jonathan, iria ser pai.
Enquanto a água caía ao longo do seu corpo, percorrendo um caminho irregular, aquelas ideias insistiam em não deixar sua cabeça. Em pouco mais de cinco minutos, experimentara raiva, frustração, desespero, alegria, esperança, amor, descrença, negação, felicidade, entre tantos outros sentimentos para os quais as línguas humanas não têm palavras. Só não conseguia permanecer indiferente.
Desligou o chuveiro e secou-se demoradamente, sentindo a água que escorria de seus cabelos por suas costas num movimento intermitente, interminável, intercalando paradas bruscas com aceleração repentina.
Um aroma adocicado bailava no ar, invadindo suas narinas como jovens bailarinas dançando à música de um Stravinsky, rodopiando com seus pés fortes e delicados pelo interior das narinas em direção ao seu âmago. O cheiro de Julia tinha uma qualidade tal que lhe causava arrepios, reavivando memórias, relembrando-lhe de como se encontraram pela primeira vez na cafeteria, numa manhã auspiciosa de outono, como ele lhe comprou um buquê de rosas quando saíram pela primeira vez e descobriu, tarde demais, que ela era alérgica, como ela mexia em seus cabelos e lhe fazia cócegas, como haviam dormido juntos pela primeira vez, e como, no dia seguinte, disseram, também pela primeira vez: eu te amo. E não pararam desde então.
E pensando em tudo isso, memórias ativadas por um simples perfume, Jonathan soube que, mesmo estando ele inseguro, apavorado e completamente despreparado, era chegada a hora.
Vestiu-se para suas aulas, como sempre fazia, mas não pôde evitar que um sorriso – tímido a princípio – se formasse em seus lábios. Quando saiu, nem os óculos escuros conseguiam esconder o brilho em seus olhos.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Mito da criação (parte 5 - Versão 2.0)

Pode ser estranho vir aqui para ler o mesmo "capítulo" de antes, mas a verdade é que ouvi meus leitores (uma em especial, Marina) que me mostrou como estava confusa a ligação que Jonathan fazia entre uma coisa e outra. Reli o trecho e decidi que ela estava certa. Não busquei esclarecer excessivamente, mas ao menos colocar mais imagens metafóricas (além de mitos da criação, de fata. Alguém consegue adivinhar quais são?) de sexo e criação. Além, é claro, de ter feito pequenas alterações em outras partes para tornar a leitura mais agradável.
Bom, espero poder, na segunda-feira, retomar o ritmo. Em breve, terei alguns outros trabalhos de tradução, mas enquanto isso, tentarei me adiantar no conteúdo do conto, que está chegando ao fim. Espero...

Mito da criação... 5.2

Palavra por palavra, as almas iam encerrando-se com vagar. Suas vozes eram como uma melodia irreconhecível, soando grave e agudo, alto e baixo, em dezenas de tons, seguindo um ritmo próprio e individual.
Páginas e mais páginas haviam se enchido com as lágrimas escuras de pessoas que nunca existiram. De seu futuro, um perfume negro exalava, tomando conta do ambiente e decorando a escrita. Cada expressão usada, cada ação narrada, era uma alma que deixava este mundo para retornar ao papel, agraciando o enredo com sua essência.
Havia, no entanto, uma que recusava a silenciar. Ao contrário, quanto mais de sua história era contada, mais ela erguia a voz, materializando-se diante de Jonathan. Seus lindos cabelos negros escorriam em ésses sibilantes, seus olhos escuros em forma de ós, e suas longas pernas estendiam-se em éle por linhas adiante.
Seu nome era Célia Reimblanc, filha de Gerard e Marie, irmã de Sophie, Clara, Vera e Jean-Luc. Nascera 23 anos antes, em Paris; e sua voz melodiosa, Jonathan descobriu, tinha poder sobre Christian e toda sua fúria. Ele parecia hipnotizado pelos trejeitos daquela mulher – os gestos, os olhares, sua aura meiga e gentil.
Mas onde haveriam eles se conhecido? Enquanto se questionava a respeito, Jonathan pensou discernir, por entre suas dúvidas, uma igreja. Ainda um tanto incerto, passou a descrevê-la em vitrais, bancos, rezas, castiçais, senhores, senhoras e crianças, santos, batinas, dízimo, pobreza e bonança. Em meio a seu texto, conseguiu encontrar a fé em Deus e a esperança, essa eterna busca pelo inalcançável que tanto nos move. Mas nada de Célia e Christian.
O autor apurou os ouvidos e concentrou-se em seus personagens, tentando encontrar pistas sutis que indicassem aquilo que estava procurando – a origem daquele caso desconhecido entre suas criações. Mas como foi que ele e Julia haviam começado?

Do lado de fora, o sol nascia sem pressa; seus raios eram braços que se espreguiçavam, erguendo-se e esticando-se após despertar. Subindo devagar, parecia bisbilhotar o trabalho de Jonathan em seu processo criativo, surgindo sorrateiro pela janela, invadindo o recinto pouco a pouco. Como uma criança que faz algo proibido, a claridade ergueu-se de pouquinho em pouquinho, certificando-se de que não havia ninguém por perto.
Dentro do cômodo, Jonathan sentia uma terrível dor no pulso, e um desejo irremediável de conhecer seus personagens. O sol era apenas uma companhia – silenciosa e agradável – enquanto ele realizava seu trabalho. Não aquele ao qual teria de comparecer dentro de três horas; o real trabalho, de criar e desvendar mundos, dar vida e essência ao barro, erigindo uma civilização com um objetivo claro como piche. Um monumento alto e robusto, uma lança a penetrar o mar, de cujas gotas surgiriam ilhas; um gigante cujo suor faria nascer homens; uma vaca cujo leite acenderia alimentaria o fogo da criação. Era ele um deus, um membro forte e penetrante nas reentrâncias do mundo, e sua imaginação era seu gozo.
Cada símbolo no papel era uma folha. Uma palavra, um arbusto. Unidas em blocos, eram bosques. E viriam pedras, e fontes e lama e vento e céu e sol – essa luminescência preciosa – e lua e noite e barro. E vida. Sua criação em breve estaria completa, habitada por criaturas de sonho e poder; eram tantas as possibilidades.
E foi então que ele percebeu. Juntando as pistas – haviam elas existido de fato? – ele acordou de seu transe divino e correu até o banheiro para buscar a evidência. Onde estava? Procurou pela pia, na privada, pelo chão. No lixo. Como suspeitava. Ele criara vida, sim.
Julia estava grávida.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Mito da criação (parte 5)

Em primeiro lugar, perdão pela demora!
Pronto, falei. Agora que tiramos isso do caminho, cabe dizer que tenho pensado muito a respeito do blog, e eu gostaria de transformá-lo em algo mais do que somente um espaço em que eu coloco meus textos e fico esperando comentários. Foi graças ao blog que conheci outros blogueiros muito legais e que hoje acompanho (apesar do lixo ser meio que a norma geral da web, ainda assim tem gente com conteúdos muito bons por aí. Não desistam), e gostaria de tornar o meu algo mais cultural; ter um objetivo algo mais nobre.
A primeira coisa que me passou pela cabeça - já que estou tendo aulas disso - é retomar o assunto da tradução ou do Japão (e quem sabe os dois juntos, não?), que foram tópicos sobre os quais eu gostei muito de escrever e de ouvir (ler) pessoas falando a respeito. Nesse caso, se houver alguém aí (ou já me abandonaram?) e quiser citar algo que queira discutir saber, ou que gostaria de me pedir para traduzir algo (em inglês e em francês fica mais fácil pra mim, mas dependendo do nível, posso tentar o japonês também), me mande um comentário. Vamos "evoluir" o blog. Evolve or die, as they say.
Também estive pensando acerca dos rumos que "Mito da Criação" está tomando - que são completamente distintos do que eu tinha pensado no começo - e no que fazer a respeito. A história, por mais "dirigida" que seja, tem vida própria, e essa já escapou ao meu controle. De repente tenho que dar uns tapas nela pra mostrar quem é que manda. Hoje, aliás, ela deu uma guinada que eu não esperava (apesar de, vendo agora, parecer um tanto óbvia). Espero que a metáfora seja bem entendida.
E então, depois de ficar jogando informação "à la loca", eis:

Mito da criação... 5

Palavra por palavra, as almas iam encerrando-se uma a uma. Suas vozes eram como uma melodia irreconhecível, soando grave e agudo, alto e baixo, em dezenas de tons, seguindo um ritmo próprio e individual.
Páginas e mais páginas haviam se enchido com as lágrimas escuras de pessoas que nunca existiram. De seu futuro, um perfume negro exalava, tomando conta do ambiente e decorando a escrita. Cada expressão usada, cada ação narrada, era uma alma que deixava este mundo para retornar ao papel, agraciando o enredo com sua essência.
Havia, no entanto, uma que recusava a silenciar. Ao contrário, quanto mais de sua história era contada, mais ela erguia a voz, materializando-se diante de Jonathan. Seus lindos cabelos negros escorriam em ésses sibilantes, seus olhos escuros em forma de ós, e suas longas pernas estendiam-se em éle por linhas adiante.
Seu nome era Célia Reimblanc, filha de Gerard e Marie, irmã de Sophie, Clara, Vera e Jean-Luc. Nascera 23 anos antes, em Paris; e sua voz melodiosa, Jonathan descobriu, tinha poder sobre Christian e toda sua fúria. Ele parecia hipnotizado pelos trejeitos daquela mulher – os gestos, os olhares, sua aura meiga e gentil.
Mas onde haveriam eles se conhecido? Enquanto se questionava a respeito, Jonathan pensou discernir, por entre suas dúvidas, uma igreja. Ainda um tanto incerto, passou a descrevê-la em vitrais, bancos, rezas, castiçais, senhores, senhoras e crianças, santos, batinas, dízimo, pobreza e bonança. Em meio a seu texto, conseguiu encontrar a fé em Deus e a esperança, essa eterna busca pelo inalcançável que tanto nos move. Mas nada de Célia e Christian.
O autor apurou os ouvidos e concentrou-se em seus personagens, tentando encontrar pistas sutis que indicassem aquilo que estava procurando – a origem daquele caso desconhecido entre suas criações. Mas como foi que ele e Julia haviam começado?

Do lado de fora, o sol nascia sem pressa; seus raios eram braços que se espreguiçavam, erguendo-se e esticando-se após despertar. Subindo devagar, parecia bisbilhotar o trabalho de Jonathan em seu processo criativo, surgindo sorrateiro pela janela, invadindo o recinto pouco a pouco. Como uma criança que faz algo proibido, a claridade ergueu-se de pouquinho em pouquinho, certificando-se de que não havia ninguém por perto.
Dentro do cômodo, Jonathan sentia uma terrível dor no pulso, e um desejo irremediável de conhecer seus personagens. O sol era apenas uma companhia – silenciosa e agradável – enquanto ele realizava seu trabalho. Não aquele ao qual teria de comparecer dentro de três horas; o real trabalho, de criar e desvendar mundos, dar vida e essência ao barro, erigindo uma civilização com um objetivo claro como piche.
Cada símbolo no papel era uma folha. Uma palavra, um arbusto. Unidas em blocos, eram bosques. E viriam pedras, e fontes e lama e vento e céu e sol – essa luminescência preciosa – e lua e noite e barro. E vida. Sua criação em breve estaria completa, habitada por criaturas de sonho e poder; eram tantas as possibilidades.
E foi então que ele percebeu. Juntando as pistas – haviam elas existido de fato? – ele acordou de seu transe divino e correu até o banheiro para buscar a evidência. Onde estava? Procurou pela pia, na privada, pelo chão. No lixo. Como suspeitava, lá estava. Ele criara vida, sim.
Julia estava grávida.