sábado, 27 de dezembro de 2008

Mito da cração (parte 4)

Com cada novo capítulo, eu vou conhecendo mais os meus personagens e a minha história, não muito diferente do que acontece com Jonathan e sua criação. De certa forma, creio que aquilo que contamos tem, em si, um pedaço de nós; e é muito gratificante ver que a história vai tomando uma vida própria, desenvolvendo-se como ela tem de fazer, e não de acordo com a vontade solene de um ser. Gosto de me enxergar como um narrador, que narra (notem a importância da palavra) fatos que poderiam ter acontecido. A história existe, e eu sou apenas o meio pelo qual ela se faz transmitir.
Agora, algumas coisas ficaram mais claras, alguns acontecimentos tomaram rumos que eu não pretendia inicialmente, e outros eventos estão mudando - lentamente. Sei que tudo isso pode ser bastante vago, mas não posso deixar de escrever o que está ocorrendo. De início, eu achava que a história se resolveria em 5 ou 6 partes. Hoje, tenho certeza que serão pelo menos 10. Até a Julia se apresenta, ela que nem estava prevista resolveu dar as caras. Outros eventos se extinguiram, e ainda há muitas surpresas pela frente.
Aos que frequentam o blog, lêem e comentam - ou não - agradço a preferência ;-)
E desejo a todos, se um pouco fora de hora, um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo.
Agora, à história.

Mito da criação... 4

Como combinado, Julia chegou meia hora depois de ligar, trazendo a pizza consigo. Enquanto ela levava suas coisas para dentro, Jonathan ia cortando sua janta. Julia havia pedido metade de pepperoni para ele e metade rúcula e tomates secos para ela, que estava de dieta – de novo.
Jonathan foi até a cozinha para pegar os pratos e os talheres e procurar algo para beberem. Quando retornou à sala, viu sua namorada comendo uma fatia com as mãos, sem dar muita importância à etiqueta. Ele sorriu e acompanhou-a no gesto, escolhendo para si um pedaço cheio de rodelas de carne.
Conversaram divertidamente enquanto devoravam a pizza entre goles de refrigerante e risadas, saboreando a companhia um do outro, engordurando-se com cada pedaço a mais. Trocaram assuntos, beijos e suspiros; e ao final, cansados, foram deitar-se. Não demorou muito, estavam ambos dormindo.
Seu sono, contudo, foi breve. No meio da noite, o celular de Julia começou a tocar uma música irritante, acordando os dois. Ela atendeu a chamada e arrumou suas coisas para voltar ao hospital. Um de seus pacientes havia tido uma recaída, e ela precisava vê-lo. Meio às pressas, ela beijou Jonathan nos lábios e pôs-se a sair.
Quanto a ele, já que estava acordado, resolveu que faria algo de produtivo, ao invés de rolar na cama por horas até pegar no sono.
Passou a recolher o que haviam comido e sujado para pôr tudo de volta no lugar. Limpou a sala e foi, em seguida, organizar a cozinha. E enquanto lavava os copos, ouviu um ruído no fundo de sua mente, uma voz fraca, indicando que havia ainda alguém ali. Na água, ele discerniu uma figura passageira, que aos poucos foi se tornando clara e transparente. Era Christian. Ele estava vivo.
Jonathan não perdeu tempo e foi correndo até o escritório. Tomou a lapiseira em mãos e pôs-se a escrever.
Imagens começaram a formar-se com cada linha, um sombreado escuro debruçava-se sobre a folha, revelando, de pouco em pouco, o que Jonathan tanto ansiava por saber. Algum tempo havia se passado desde que ele vira Christian pela última vez. Algo havia mudado em seu personagem após a luta com Adahn; que o marcou de tal forma e tão profundamente que estava agora irreconhecível.
Do papel, sua voz parecia erguer-se como um trovão, reverberando por todo o apartamento. Um eco de malícia e revolta, de orgulho ferido e ódio se fez ouvir, aprofundando-se no silêncio da madrugada. Christian não era assim. Não antes.
De repente, das linhas azuis, dezenas, centenas, milhares de vozes ergueram-se, falando sobre suas vidas, seus sonhos, seu futuro, e sua morte. Todas nas mãos e na espada de Christian.
Pequenas almas levantavam-se do grafite em tons de acusação.
Jonathan, assustado com a agitação, fechou o caderno, esperando com isso encerrar as vozes; mas elas surgiram em espiral, batendo forte contra os seus tímpanos. Ele virava-se de um lado para o outro em meio ao som do silêncio, procurando uma saída; mas estava cercado.
Enclausurado por suas próprias escolhas, ele reabriu o caderno, sentindo o peso dos olhares, dos tons de claro e escuro mesclando-se na folha, e fez a única coisa que poderia: contou a história.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Mito da criação (parte 3)

Perdão pela demora para atualizar o blog. Infelizmente, tive problemas de order profissional/pessoal/estudantil/...
De qualquer modo aos (poucos) que seguem o blog, eis aqui a terceira parte do conto.
Aproveitem:

Mito da criação... 3

A escrita jorrava de seus pulsos, descrevendo meticulosamente toda a ação que se desenrolava à sua frente. Homens lutavam, brandindo ferozmente suas espadas, envoltos por uma cortina de tinta que demorava a se abrir.
Jonathan percebeu que a velocidade com que escrevia não era a mesma com que a luta ocorria. Quando descrevia a morte do segundo cavaleiro, outro já agonizava no chão, implorando uma chance a mais a seu criador. Parecia pedir que o deixasse viver, que reeditasse a cena, tornasse-o o herói. Qualquer coisa.
Mas ele não entendia. Não era Jonathan o criador, era ele o narrador. A história era inevitável e implacável. Ela tinha de ser assim. Com um pesar nos olhos, Jonathan assistia quando mais um caía, trespassado pela lâmina de seu inimigo.
Quando ele enfim terminou de descrever o evento é que se deu conta que havia perdido quatro filhos àquela noite; os únicos que restavam de pé eram Christian e Adahn. Exatamente como ele previra. O herói e seu vilão. A Quimera de Belerofonte.
A tensão era palpável, e Jonathan conseguia senti-la no ar, que se tornara repentinamente pesado e austero.
A porta do escritório bateu atrás dele. Estava trancado. Sozinho com sua criação. Iriam lutar? Digladiar-se até que algum deles cedesse? Ou morresse? Ele precisava fazer alguma coisa. Impedir a autodestruição de seus personagens. Ao menos por enquanto. Não havia chegado a hora.
Ele, que fora tão impiedoso com seus outros filhos, suas outras idéias, batia-se agora para pensar em algo para salvar esses dois.
Pela janela diante da escrivaninha, vislumbrou a noite que havia surgido – quando? – e os postes que tentavam iluminá-la. Sem sucesso. Aquela luz fraquejante não era páreo para as sombras. Não agora.
De repente, a um canto, discerniu o vulto de um de seus personagens – qual deles? – disparando pela floresta. Jonathan levantou-se tão rápido quanto pôde e partiu em perseguição. Ele precisava impedir que tudo terminasse agora.
Estrelas soltas esforçavam-se em brilhar em seu caminho, mas a copa das árvores formava um telhado de trevas. Adiante, galhos de um lado e de outro da estrada – que estrada? uma trilha? – formavam um portão. Seria aquela a passagem de entrada ou de saída?
Mais um vulto. Dessa vez, atrás do sofá, no canto do escritório. Lentamente, Jonathan dirigiu-se para o local.
Nada.
Poeira, na verdade. Ele tinha de varrer. Depois. Mais tarde. Amanhã.
Sentou-se novamente e ficou olhando para a parede, remoendo-se. Olhou para a próxima página e notou que ela estava marcada por uma mancha escura. Sangue de alguém havia vazado e pingado. Tinha gosto de café.
Tomou a caneta em mãos e tornou a verter a história. Ela precisava ser contada. Christian e Adahn. Adahn e Christian. Seu herói não tinha chance.
O autor debruçava-se sobre o papel, escrevendo o mais rápido que podia, tentando acompanhar o movimento frenético dos dois combatentes. A luta era injusta. Desigual. Adahn levava ampla vantagem, e havia desarmado Christian. Nesse ponto, Jonathan simplesmente largou sua caneta, sua lapiseira, sua borracha, seu laptop, seu caderno, tudo, e pôs-se a assistir. Adahn estava de pé sobre um herói escorraçado, movendo seus lábios num sorriso malicioso. Quando ele tomou sua espada e lançou-a contra Christian, num movimento último, o telefone tocou.
Jonathan, assustado, levantou-se e atendeu. Era sua namorada, que havia ligado para avisar que iria dormir na casa dele hoje. Chamariam pizza.
Quando ele desligou o telefone, voltou o seu olhar para o caderno, ansioso pela conclusão. Mas não viu mais nada.

domingo, 14 de dezembro de 2008

Mito da criação (parte 2)

Seguindo a programação, aqui vai a segunda parte do conto. E sem muito preâmbulo.
Divirtam-se!

Mito da criação...2

Perambulando pelo ínterim de sua invenção, Jonathan coletava todas as informações que precisava, complementando-as com pinceladas novas quando necessário.
Ele descobriu, enfim, o nome de seu protagonista – Christian – e o passado que tanto o atormentava. Em sua breve passagem, o autor vislumbrou dois irmãos e uma irmã, todos mais novos. E à medida que narrava os acontecimentos – da cavalgada pela floresta e o acampamento que montara junto dos outros cavaleiros – ia incorporando sua infância em Toulouse à história.
Não era necessário contar de como Christian partira para Paris com o mundo à sua frente e o diabo às suas costas. De seu árduo treinamento até juntar-se à cavalaria. Isso estava já descrito na ponta de sua borracha, que Jonathan ia passando para apagar tudo o que não fosse essencial à narrativa. Em breve, ele apagaria também as gotas de chuva e a luz do dia, restando somente a noite aos personagens em suas barracas. E o vento uivando sobre eles.
Quando terminou sua xícara de café, Jonathan empurrou-a para longe, deixando-a próxima de uma trilha, onde corria a palavras rápidas e bruscas o homem que Christian e sua trupe tanto procuravam. Ele corria como podia, caindo a cada duas ou três linhas. Seu desespero era latente, e Jonathan levantou-se de seu lugar para dar-lhe passagem e assistir à cena com atenção.
O autor acompanhou de perto a dor e o sofrimento do seu próprio personagem, sentindo um aperto no peito enquanto media as palavras para transcrever a visão que teve.
O grafite vertia no papel tal qual lágrimas de ódio e tristeza. Cada expressão usada era um passo dado; cada pingo em cada i, uma gota de suor.
Sentindo a testa úmida, Jonathan levantou-se e foi até o banheiro. Ligou a torneira e molhou o rosto de leve, secando-o diante do espelho. Ao fundo, alguns passos atrás de si, ele discernia a cena seguinte, o que estava para acontecer. O inevitável desfecho.
Saiu do banheiro e pegou a xícara vazia na escrivaninha. Largou-a na pia da cozinha e voltou para o escritório a passos lentos. Sentia seus ombros arqueando com o peso da responsabilidade.
Sentou-se na cadeira e mirou a folha. Releu o que tinha escrito e corrigiu algumas coisas. Aí, respirou fundo e armou o encontro.
Christian, Adahn e companhia atravessaram a imensidão de papel e chagaram ao seu destino, ao homem que procuravam.
Jonathan colocava mais grafite em sua lapiseira enquanto os cavaleiros sacavam suas espadas. O cheiro de ferro queimado era a borracha contra o papel, a lâmpada no corredor que piscava e se recusava a permanecer acesa.
Antes de prosseguir, Jonathan levantou-se uma vez mais e foi ao banheiro. Olhou para o espelho e observou, ao fundo, tudo o que estava para acontecer.
Sentiu suas mãos molhadas e vermelhas quando voltou para o escritório. Dessa vez, usaria a caneta. O sangue em suas mãos era a tinta que se espalhava pelo papel e que escorria de seus personagens a cada golpe de sua imaginação.
Ao fim da página, havia cometido seu primeiro assassinato.
E viu que gostava.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Mito da criação (parte 1)

Como finalmente entrei em férias da faculdade, pensei em iniciar esse período me ocupando, e resolvi criar um "projeto" no site. Recentemente, tive uma idéia para uma história, e sabendo que ela seria maior do que o que eu normalmente escrevo, decidi publicá-la em partes. O ideal é que seja publicada toda segunda-feira (iniciando hoje, dia 08/12/2008).
Ainda não sei em quantas partes, pois não terminei de escrever, mas já estou finalizando as próximas duas e começando a escrever a quarta. Imagino que pelo menos seis sejam necessárias (embora eu esteja apenas conjecturando).
Como sei que esse projeto é um tanto experimental, estou aberto a todo tipo de críticas. Desde já, espero que aproveitem e gostem, e que queiram continuar lendo depois desta primeira parte.
Agora, sem mais delongas, o conto:

Mito da criação

Jonathan desligou a televisão e levantou do sofá, caminhando vagarosamente até o quarto. Abriu uma gaveta a um canto de sua cabeceira e puxou um caderno fino. Folheou-o preguiçosamente, contando o número de páginas escritas – apenas seis – e tornou a fechá-lo, carregando-o debaixo do braço até a escrivaninha do escritório. Separou o material que usaria – uma lapiseira grafite 0.7, uma borracha, uma caneta tinta preta e seu laptop, aberto para pesquisas e referências – e sentou na cadeira.
No entanto, olhando do caderno para a mesa, sentia que faltava alguma coisa… Coçando a cabeça de leve, ergueu-se e foi até a cozinha. Pegou uma caixa de leite e deixou que seu conteúdo escorresse para dentro de uma caneca. Aqueceu-a no microondas e, após, derramou-lhe uma colher de café e duas de açúcar.
Ao fim do processo, voltou para o escritório e soltou a caneca à direita do caderno, ao alcance de suas mãos. Tomou um gole – queimou sua língua de leve – e colocou-a de volta. Enfim, abriu o caderno.
Há algum tempo havia tido uma idéia para uma história, mas só agora achava que ela havia amadurecido o bastante para colocá-la no papel. Fechou os olhos e contou até dez, respirando profundamente. Aí, tornou a abrir os olhos e concentrou-se na escrita.
Com sua primeira linha, sentia a chuva caindo de leve. A água escoava de suas mãos para o grafite, e a cada palavra, uma nova árvore nascia. Ao término da primeira frase, ele estava num bosque. Ao fim do parágrafo, era uma floresta.
Até a chuva havia aumentado, caindo a letras grossas sobre o papel. O cheiro de terra molhava exalava de cada linha, e o vento uivava a cada movimento de sua mão, soprando ora com calma, ora com vigor.
De repente, ao longe, ele ouviu o som dos seus primeiro personagens se aproximando. Eram cinco, e montavam cavalos pesados e fortes. Sua trupe estava em busca de algo, ou alguém.
Estavam cercados por lobos de borracha e predadores de papel, espreitando a todo canto. Quanto a Jonathan, ele não tinha o que fazer senão encontrar o personagem principal. Em poucas frases, o autor deu-lhe uma armadura sobre os ombros e uma espada à cintura. Com algumas linhas grossas, viu nascer-lhe um cabelo escuro e comprido. Contudo, a luz do seu computador dava-lhes um tom castanho e profundo.
Aos outros personagens, ele dedicou não mais que um gole de café. Exceto ao líder da comitiva, Adahn. Como bom antagonista, esse merecia dois goles e um esmero especial.
Jonathan levantou-se do chão embarrado e foi sentir o vento e a chuva. Deu alguns passos pela casa, esquivando-se de eventuais galhos e árvores, aproveitando para observar o ambiente. Cada grão de areia, cada gota de suor, cada pingo de orvalho, cada raio de sol, cada nuvem no horizonte, cada futuro sombrio e incerto, cada passado obscuro e tenebroso, cada momento presente, cada amor impossível, cada amizade sincera. Sem perceber, ele deixou-se levar pela imensidão da própria criação, e saiu à procura de tudo o que necessitava.