quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Fumaça e espelhos (redux)

Pois é, eu não tenho tido tanto tempo quanto gostaria para me dedicar a produções novas; no caso, eu tenho tido relativo sucesso reescrevendo ou reformulando algumas histórias mais antigas. Um destes casos é essa, que apareceu aqui algum tempo atrás, chamada Fumaça e Espelhos. Segui alguns conselhos, ouvi algumas críticas, e cheguei ao que, creio ser uma versão quase final do conto (acho que nunca chegamos ao final; nunca está perfeito, sempre tem o que melhorar).
Bom, àqueles que já leram, espero que achem melhor (e digam se melhorou ou não), e aos que não leram, espero que gostem (e digam o que acharam).

Fumaça e espelhos

Ele levantou cedo da cama, desligando o despertador que insistia em tocar ruidosamente ao seu lado. Roçou a cabeça de leve, desarrumando sua cabeleira negra. Passou a mão pelo rosto e sentiu a barba rala que se aventurava vertiginosamente até o meio do pescoço.
Tirou o lençol abarrotado de cima da cama e levantou-se, abrindo os braços finos e compridos para espreguiçar-se; sua sombra parecia esticar-se como um animal antigo e esquelético, à espreita nos cantos e paredes mal-iluminadas. Esfregando os olhos, olhou-se duramente no espelho, encarando seu reflexo esguio e sombrio. Um brilho rubro iluminava sua íris castanha, cintilando por um momento, efêmero como uma estrela cadente que mergulha silenciosamente na escuridão do universo.
Ele caminhou até a cozinha, onde pôs a água para ferver no fogão, ouvindo o assovio solitário da chaleira contra os infinitos ladrilhos que cobriam o cômodo de ponta a ponta. A água se esvaía em baforadas contínuas de fumaça e solidão.
Ele derramou o líquido numa xícara e completou a mistura com café e açúcar, bebendo sonoramente na casa vazia.
Findado o seu desjejum, ele caminhou a passos lentos e arrastados até o banheiro, onde tirou o pijama e ligou a água do chuveiro. Antes de entrar, mirou-se em um espelho que havia sobre a pia, admirando sua nudez pálida e magra. Seus olhos, ele notava, exibiam pequenas olheiras escuras e circulares, envolvendo sua visão como pequenos buracos negros que sugavam toda a luz ao redor. Cansado, ele entrou no chuveiro e lavou-se vagarosamente com a água morna, despertando de gota em gota.
Saiu do chuveiro e puxou uma toalha, que todas as noites deixava pendurada no box para não ter que passar trabalho pela manhã. Ainda pingando sobre o chão gelado de mármore, lambuzou o rosto com creme de barbear e puxou sua gilete.
Começou passando a lâmina pela face esquerda, prestando atenção em sua imagem para não errar. Cortou-se para cima e para baixo, buscando eliminar aquele redemoinho conjunto e rebelde de pelos que teimava em nascer e crescer e grudar-se ao seu rosto. Em movimentos rápidos e imprecisos, eliminou-os uma vez mais.
Quando terminou aquele lado, lavou a gilete na pia para tirar o excesso de espuma.
Nem teve tempo de perceber sua imagem refletida estendendo a mão para fora do espelho e, num movimento rápido, rasgar-lhe a garganta. Com um brilho escarlate vibrando venenosamente em sua íris enegrecida, seu reflexo brandiu a lâmina torta e gasta da esquerda para a direita, abrindo um talho em seu pescoço tal qual um sorriso fora do lugar, desesperadoramente satisfeito com seu resultado terminal e irrecorrível.
Sem emitir um ruído sequer, encostou-se à parede branca e gélida e deixou que seu corpo deslizasse suavemente até o chão, sentindo um arrepio frio em seu pescoço.
Sua imagem permaneceu imóvel, observando-o com um sorriso malicioso. Apenas mais tarde, apercebendo-se de sua própria natureza, é que enfim sentiu um corte profundo na garganta e caiu, sangrando até a morte.



Post-scriptum:
Àqueles que se interessam, eis o link para o post antigo
http://visoesnaareia.blogspot.com/2008/10/fumaa-e-espelhos.html

11 comentários:

Hermes disse...

Almeida, temos mais um membro do Blogs de Quinta:

Zé Neto - http://pertodoser.blogspot.com/

Adcione-o por favor!

(copiei do Carlim)
ja passei teu link pra negrada.

. disse...

Já tinha lido (e adorado) o original. Mas essa reformulação ficou beem mais legal, devo admitir.

É legal ver como vamos melhorando com o tempo, neh? Teus contos, que já eram ótimos por exemplo, estão ficando ainda melhores.

Parabéns, e continue postando aqui de vez em quando, neh :P

bjs!

Paula Barros disse...

Vi um comentário seu no blog de Gerusa e vim ler por aqui.

Gosto quando a leitura me faz ver as cenas, e ouvir os sons. Foi assim com o seu texto.

Gosto também de alguns jogos de palavras (chamo assim, não sei se é assim que se diz) que você fez.

Ava disse...

Como diria minha filha;

Muito doido...rsrs

Mehazael, desculpe, mas não resiti a exlamação em tom de gíria, isso porque os jovens, minha filha tem 17 anos, tem um jeito simplista de elogiar o que gostam...rs

Seu texto é daqueles que a gente vai lendo de um folêgo só, como diz a Paula Barros, chega a ouvir os ruidos...

Muito bom!


Prazer em conhecer!


Beijos!

Marina disse...

Nossa, faz tempo esse post! Eu gostei. Acho que deu mais realismo à cena, criando um cenário maior.

Se fosse um filme, eu não dormiria hoje. Minha imaginação me prega peças irritantes.

Hermes disse...

Cara, que viagem, esse final ficou super! Não sei se era assim no outro, até falta tempo de olhar. Mas pirei nessa nova leitura, ainda preciso ler novamente. O final foi o melhor do texto, valeu a pena.

Vrcarvalho disse...

Primeiro: To meio sem tempo para atualizar o blog e dar o devido tratamento que a foto do heitor merece.

Segundo: Eu não estava muito certo de que ia expor na galeria até a última hora, então acabei não convidando ninguém. Como o material pode vir para Porto Alegre logo, eu convido a galera quando ninguém precisar se deslocar 40km pra ver uma foto.

Terceiro: esqueci do resto do teu comentário e to com preguiça de ir lá ler.

Quarto: afuzel o conto. Só falta alguma coisa explodindo, mas isso pode ficar para a versão em filme.

Ava disse...

Mehazael, que bom vc aparecer...

Não sou escritora, poeta nem nada afim...rsrs

Apenas escrevo... Nem regras de português eu sigo, porque já saí da escola faz é tempo...rs

Tô voltando agora, para uma pós-graduação, depois de 25 anos afastada do meio acadêmico.

Palavras sentimentos, brotam, e colocar no papel ou aqui, em um blog, é uma forma de não morrer sufocada.rs

Não conheço o poema que vc citou, do Cassimio de Abreu, vou pesquisar...



Beijos!

A moça da flor disse...

realmente prendeu minha atenção! Aha! tenho um bom contista nos blogs de quinta agora!
adorei a parte descritiva! Sou suspeita pra falar porque adoro descrição, mas só gosto quando são como as suas, bem feitas! Adoro essas personificações dos objetos " A água se esvaía em baforadas contínuas de fumaça e solidão."
Gostei um bocado!

Bem vindo aos blogs de quinta!
Abraço ^^

Paulo Henrique Passos disse...

Cara, bem vindo ao "Blogs de Quinta".

Realmente dá pra imaginar tudo que ele faz, cada passo e tal. Os detalhes da descrição dão um ritmo lento ao texto, assim como estava o personagem, por isso ficou interessante.

Valeu!

Paulo Henrique Passos disse...

Ah, quanto a ter vivenciado a história que tá lá no blog, não, não aconteceu comigo. E parece-me que você pensou que eu estudo direito. Mas não também. É que teve uma época que estudei um pouco pra um concurso, em casa mesmo. Não passei. Mas meus estudos me renderam aquele texto, e achei tão bom quanto ter passado.