quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Da tradução

Desde que a idéia de traduzir um conto me veio à cabeça, também pensei em discutir alguns dos pormenores da tradução. Eu sempre achei que, quando um tradutor é bom, ninguém lembra que ele existe, nem que aquilo que estão lendo vem de outra língua. Ele faz (ou deve fazer) com que o texto "soe" (do verbo soar) português (ou inglês, francês, japonês, russo, etc).
Contudo, durante esse processo, há uma série de decisões que devem ser feitas. Não somente isso, há todo um contexto a ser respeitado e que, muitas vezes, pode alterar a percepção que se tem de um texto. Um texto escrito em inglês carrega com ele todo o contexto social em que foi escrito. Há situações e termos que, no contexto americano, significam x. No contexto brasileiro, y. Por exemplo, se falarmos de futebol aqui, vem com esse assunto tudo que se sabe a respeito do esporte no nosso contexto. Se traduzirmos esse texto para inglês, por exemplo, teremos outros valores agregados ao esporte. Possivelmente, dependendo da importância do jogo para o texto, não duvido que o tradutor optasse por converter esse "futebol" em "baseball" (tomando, é claro, os Estados Unidos como parâmetro).
No texto que eu traduzi no post anterior, Suicídios de Amor existem num contexto muito específico do Japão. Existe um "cargo" que é o "omiai" ("O" de respeito, "MI" de ver, e "AI" de encontro). Essa pessoa é uma testemunha de casamentos arranjados que existem lá. E existem muitos. É muito comum os casais nem se conhecerem antes do casamento, resultando numa união por interesse, que nem sempre dá certo. Como o interesse familiar lá é muito grande, não é raro haver casais que mal conhecem o parceiro. Numa sociedade machista, o homem sai para trabalhar e a mulher fica em casa cuidando dos filhos.
Por isso, quando um casal se ama, acontece de eles combinarem o que chamamos de "suicídio de amor", "suicídio por amor" ou "duplo suicídio". Creio que é a isso que o texto se refere. A um casal que se ama, mas que só pode ficar junto (nessa sociedade machista) na hora de sua morte.
Essa é a questão cultural que pode elucidar alguns aspectos do texto, ou no mínimo enriquecer suas possibilidades. Em outros aspectos menos urgentes para a trama, mas igualmente importantes para a tradução, escolhi manter o termo orignal "hashi", que são os "pauzinhos de comer". Ao menos, para manter o nível da linguagem, e não manchar um texto sensível com esse termo. Sobre a "tigela", primeiro traduzi por "prato", pensando em diminuir a distância entre a nossa realidade e a deles; mais adiante no texto, contudo, percebi que havia muitos termos estrangeiros para fingir que tudo poderia acontecer exatamente aqui no Brasil, e acabei voltando atrás, deixando os utensílios culturais mais visíveis. Da mesma forma, a mesa que a mãe joga no chão, traduzi por "mesinha". Na tradição ocidental, as mesas são usadas para comermos sentados em cadeiras. No japão, as pessoas sentam no chão para comer, daí uma mesa pequena, que a mulher poderia facilmente erguer e arremessar. Quem assiste animes ou filmes japoneses deve conhecer.

Basicamente, era isso que eu queria escrever, trazendo à luz um pouco do trabalho do tradutor, além de mostrar algumas pequenas escolhas que ele deve fazer durante o processo tradutório, independentemente do tamanho do texto. Espero que tenham sido bom, e que tenham gostado.

5 comentários:

Anônimo disse...

Maravilhosa a cultura que você transmitiu neste texto.

Muito bom seu blog.

Beijos.

Marina disse...

Engraçado que, quando eu li seu texto passado, eu tinha acabado de ler uma série de mangá. Foi coisa de minutos mesmo; acabei de ler e vim para a internet ler blogs. Logo, foi natural eu visualizar o ambiente de uma casa japonesa e só vim perceber essa curiosidade agora. Eu acho que estava meio avoada no dia.

Achei interessante o começo do sobre tradução, em que você diz que tradutor bom é aquele que ninguém lembra da existência. Fiquei pensando se as traduções ruins são assim de propósito. Por vaidade. É bom saber essas coisas.

Gostei muito das suas considerações quanto ao meu texto "esperança". É interessante ler opiniões diferentes e devo confessar que concordo em parte com você. Mas há mais a se considerar naquele texto, que me fez escrever tudo aquilo. É quase... pessoal.

Abraço.

Chellot disse...

Sempre que leio um livro estrangeiro, procuro saber quem foi o tradutor. Não sei dizer se o tradutor traduz o texto literalmente ou se o transforma em algo mais engajado na realidade do leitor.
Agradeço seu comentário. Sei que meus contos estão muito aquém de um bom texto literário. Gosto de escrever. Não tenho a técnica, mas venho tentando lapidar minha forma de escrita. Gosto mais de fazer poesias, pois naõ preciso agir formalmente, nem atingir um modelo ideal. Meus contos são apenas um meio de desanuviar minha mente, que mode´stia parte, nunca se cansa.
Agradeço muito pelo carinho e quando quiser voltar ao Caminho dos Contos dê uma passadinha no Labirinto. Espero vc lá.

Beijos de lua.

Casa disse...

Moço, tudo bem?

Seu blog e seus textos continuam sensacionais, como sempre. Volta e meia passo aqui, mas não dá para comentar pela cada vez mais crescente falta de tempo.

Abração

Siane disse...

Oh, negão, achei muito boa essa explicação que tu deu a respeito da tradução. Dá uma visão muito boa desse trabalho tão pouco valorizado!!!! ò.Ó

Mas lembra que um texto, depois de escrito, torna-se independente. O autor (ou tradutor) não tem condições de ficar explicando o significado de cada escolha para o leitor.

Dessa vez passa... hehehe.
Brincadeira, achei muito bom!
Beijinhos.